“Videogramas de uma Revolução”: o fim do socialismo romeno através das filmagens
“Videogramas de uma Revolução”: o fim do socialismo romeno através das filmagens
A História sendo literalmente filmada. Esta seria a melhor definição para o filme "Videogramas de uma Revolução", documentário dirigido pelos romenos Harun Farocki e Andrei Ujica. O filme, de 1992, foi lançado pouco depois da revolução que abreviou a experiência socialista na Romênia, país do Leste Europeu que vivia sob o governo autoritário de Nicolae Ceausescu. E é justamente o processo de queda do ditador Ceuasescu que o documentário retrata. Por meio de diversas filmagens realizadas no calor dos acontecimentos, a película acompanha a intensa agitação popular antes, durante e imediatamente após a revolução na Romênia.
Antes de falarmos do filme, vale a pena tecer alguns apontamentos esclarecedores sobre o contexto romeno durante a Guerra Fria. O Socialismo ganhou espaço no país a partir de 1947, quando o Partido Comunista Romeno ganhou as eleições. O país, que havia sido ocupado pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial e estava em sua zona de influência, transformou-se: no lugar da monarquia, foi estabelecida uma República popular com a abdicação do rei Miguel I. A Romênia manteve-se politicamente atrelada à União Soviética até a década de 1960, quando Nicolae Ceausescu chegou ao poder, em 1967. De origem humilde e detentor de uma grande capacidade retórica, Ceausescu procurou reduzir o domínio soviético sobre os rumos do país, adotando uma política independente no que se refere às relações internacionais. Nesse sentido, ele minimizou a participação romena no Pacto de Varsóvia, aliança militar composta por países socialistas do Leste Europeu sob a liderança da URSS, e condenou a invasão soviética sobre a Tchecoslováquia, em 1968. A sua posição autônoma atraiu a simpatia dos países do Ocidente, que evitavam críticas ao governo do país. O presidente norte-americano Richard Nixon, chegou, inclusive, a visitar a Romênia em 1969, irritando profundamente a União Soviética. Ainda como parte desta política, Ceausescu ignorou o boicote dos países socialistas às Olimpíadas de 1984, realizada em Los Angeles (EUA), e fez com que a Romênia fosse o primeiro país do Leste Europeu a manter relações com a Comunidade Europeia. Adotando claramente um posicionamento de não-alinhamento no contexto da Guerra Fria, o grande mérito de Ceausescu foi contornar a animosidade dos soviéticos quanto a sua política.

Internamente, porém, a Romênia era uma autêntica ditadura. Apesar de flertar com países liberais do Ocidente, o regime de Ceausescu cerceava em grande medida as liberdades individuais. Recorrendo à censura e ao controle dos meios de comunicação, a ditadura pessoal de Ceausescu contava ainda com uma ampla rede de espionagem. Aos opositores, restava a perseguição realizada pela polícia secreta romena, a Securitate. O seu governo seguiu ainda o exemplo de outros regimes socialistas ao incentivar o culto a sua personalidade, arrogando para si o título de Conducator (que significa “chefe”, em romeno). A política econômica do país, baseada em um acelerado processo de industrialização financiado com base em empréstimos estrangeiros, entrou em colapso nos anos 80, quando a dívida galopante do país obrigou o governo a exportar grande parte da produção do país e a racionar todo tipo de recurso. O resultado foi uma intensa pauperização da população romena, desprovida de alimentos, energia elétrica, medicamentos e de boa parte dos serviços básicos. Em meio a suspeitas de corrupção e críticas quanto à má gestão, a década de 1980 acompanhou o crescimento da insatisfação popular em relação ao regime que, a exemplo dos demais países socialistas, vivia uma enorme crise.
E é esta crise que marca o ponto de partida de “Videogramas de uma Revolução”. Captando a insatisfação popular, o filme abre espaço para a explosão do movimento de oposição ao governo de Ceausescu. O documentário mostra de forma bastante competente o processo revolucionário na Romênia, responsável por findar o regime socialista que vigorava no país. Valendo-se de diversas gravações amadoras feitas no calor dos acontecimentos (cerca de 125 horas de gravações foram reunidas pelos diretores), o filme acompanha desde o protesto popular iniciado em um dos típicos comícios governamentais realizado em Timisoara até o derradeiro e emblemático fuzilamento do líder autoritário. As gravações, em grande parte espontâneas, de fato são impressionantes.
O ponto alto da película, porém, são os diálogos e discussões dos revolucionários ao tomar a estação estatal de televisão romena. Conscientes do poder dos meios de comunicação, os revolucionários deixam claro a importância que a mídia possui na construção de um discurso e no direcionamento da opinião pública. Ali, os revolucionários de primeira viagem deixam evidente não só as disputas políticas que iam surgindo na medida que o movimento ganhava maior dimensão, como também o improviso e até um certo despreparo dos que se insurgiram contra Ceausescu. Nada mais interessante do que acompanhar o caos evidente nas ações pouco coordenadas, confusas e indefinidas dos inúmeros indivíduos que estão tentando se apropriar da Revolução ao seu modo e tirar proveito pessoal da mesma. Uma verdadeira radiografia de uma revolução, vista de dentro, pelos seus próprios personagens.
Ao final do filme, a grande sensação que fica é a de que as filmagens domésticas sobre a Revolução Romena foram um dos primeiros passos da realidade midiática em que nos encontramos. Vivemos em um mundo no qual a História se faz ao vivo, imediatamente e em escala global. Um mundo no qual os meios de comunicação de massa e a circulação de informações ganharam uma dimensão gigantesca, capaz de manipular, apagar e inventar fatos, assim como alçar ao heroísmo, ou relegar à vilania, personagens célebres e indivíduos anônimos. Neste sentido, a Revolução na Romênia foi ímpar justamente por antecipar o que se viu poucos anos depois em eventos como a Guerra do Golfo, a Guerra da Bósnia, os Atentados de 11 de Setembro, além das guerras do Afeganistão e do Iraque. E que ganhou proporções ainda maiores com o advento das redes sociais, cada vez mais decisivas nos rumos políticos da contemporaneidade.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.



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