Menocchio: o filme de um clássico da Historiografia

 

Menocchio: o filme de um clássico da Historiografia


O filme "Menocchio", dirigido por Alberto Fasulo e lançado em 2018, gerou grande expectativa entre historiadores e cinéfilos devido à sua premissa baseada no aclamado clássico da historiografia "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg. O livro de Ginzburg é amplamente reconhecido por seu rigor acadêmico e pela habilidade em transformar a história do moleiro herético Domenico Scandela, conhecido como Menocchio, em uma narrativa envolvente e profundamente reveladora sobre a mentalidade popular na Itália do século XVI. Esperava-se que o filme capturasse essa complexidade histórica e intelectual, oferecendo uma representação cinematográfica rica e detalhada da vida de Menocchio e das suas ideias heréticas.

Entretanto, ao examinar o filme de perto, percebe-se que ele não atende a essas expectativas em vários aspectos importantes. A oportunidade de trazer à tona a profundidade da pesquisa de Ginzburg e de traduzir a complexidade das ideias de Menocchio em uma linguagem visual cativante é desperdiçada. Fasulo opta por uma abordagem minimalista e contemplativa, que, embora esteticamente interessante, falha em capturar a intensidade e a riqueza das interações e conflitos que marcaram a vida de Menocchio. A narrativa do filme se mostra incapaz de transmitir a força das convicções do protagonista e o impacto de suas ideias na comunidade em que vivia. A expectativa de um mergulho profundo na história e na psique do moleiro herético é frustrada por uma execução que carece de substância e vigor narrativo, deixando o público, especialmente aqueles familiarizados com a obra de Ginzburg, insatisfeito e decepcionado.


1) As Crenças de Menocchio


Primeiramente, "Menocchio" falha em explorar a complexa história por trás da vida e das convicções heréticas de Domenico Scandela. No livro "O Queijo e os Vermes", Carlo Ginzburg mergulha à fundo nas crenças e no pensamento deste moleiro do século XVI, revelando uma mente que desafiava as normas estabelecidas pela Igreja Católica e pela sociedade de sua época. Menocchio questionava dogmas religiosos, reinterpretava passagens bíblicas e apresentava uma visão cosmológica que misturava elementos do cristianismo com crenças populares.
 
No entanto, no filme, tais ideias são apenas superficialmente esboçadas. As discussões teológicas que Menocchio travava, e que foram centrais para seu caráter e seu destino, são tratadas de forma rasa. O filme apresenta algumas dessas ideias de maneira fragmentada, sem contexto suficiente para que o público compreenda a radicalidade e a originalidade de seu pensamento. Questões como sua concepção do universo, sua crítica à hierarquia eclesiástica e suas visões sobre a natureza e a criação são relegadas a meras citações ou sequer mencionadas. A riqueza do material histórico que poderia ter sido explorada é substituída por uma abordagem minimalista que não faz jus à complexidade do personagem. Esta omissão resulta em uma representação inadequada de Menocchio, reduzindo-o a um simples dissidente, sem captar genuinamente  suas convicções.



2) Falta de Contextualização



O filme se mostra insuficiente para aqueles que não estão familiarizados com "O Queijo e os Vermes" ou com a história de Menocchio. A ausência de uma contextualização histórica robusta torna difícil para o público compreender a importância e o impacto das ações de Menocchio no alvorecer da Idade Moderna. A obra de Carlo Ginzburg é notável por seu meticuloso trabalho de situar Menocchio dentro de um contexto histórico mais amplo, explicando como suas ideias eram tanto um produto quanto uma reação às transformações culturais, sociais e religiosas da época. O filme, porém, negligencia essa contextualização, falhando em transmitir ao público as nuances do período histórico em que Menocchio viveu. 

Não há uma exploração adequada das tensões religiosas e políticas da Europa do final do século XVI, quando a Igreja Católica enfrentava desafios significativos durante a Reforma Protestante e respondia com a Contra-Reforma. A Inquisição, um elemento central na história de Menocchio, é apresentada de forma vaga, sem uma explicação clara de seu papel e importância na repressão de heresias e na manutenção da ortodoxia católica. Sem a devida contextualização, o público perde a dimensão da ousadia de suas ideias e do perigo que elas representavam para as autoridades religiosas da época. A falta de detalhes sobre a vida cotidiana, as práticas religiosas e as estruturas sociais da comunidade de Menocchio também torna difícil para os espectadores compreenderem o significado profundo de suas ações e crenças. Sem uma ancoragem histórica sólida, o filme corre o risco de ser percebido apenas como uma história isolada de um indivíduo excêntrico, em vez de um relato poderoso sobre uma época de profusão de ideias religiosas heterogêneas.

Essa omissão de contexto não só empobrece a narrativa do filme, mas também limita sua capacidade de educar e engajar o público sobre um período importante da história europeia. Para aqueles que não têm conhecimento prévio da história de Menocchio, o filme falha em oferecer as ferramentas necessárias para apreciar plenamente a significância de sua trajetória e as repercussões de suas ideias heréticas.

3) Interrogatórios Inquisitoriais


O interrogatório inquisitorial, um dos aspectos mais intrigantes e potencialmente dramáticos da história de Menocchio, é apresentado de maneira arrastada e desinteressante. Historicamente, os interrogatórios do Santo Ofício eram momentos de intensa pressão psicológica e física, onde os acusados eram forçados a defender suas crenças perante uma autoridade implacável. Esses momentos poderiam ter sido utilizados para explorar a coragem de Menocchio ao desafiar a ortodoxia religiosa, revelando a profundidade de suas convicções. No entanto, o filme trata essas cenas com uma abordagem minimalista, perdendo a oportunidade de criar um drama envolvente e emocionalmente poderoso. As tensões e os dilemas que Menocchio enfrentava – como a escolha entre renunciar às suas crenças para salvar sua vida ou manter sua integridade intelectual a custo de sua liberdade e possivelmente sua vida – são meramente mencionados, sem a devida exploração dos conflitos internos e externos que esses momentos deveriam provocar. 

A superficialidade com que os interrogatórios são apresentados resulta em uma representação fraca e sem impacto significativo. As perguntas incisivas dos inquisidores, que poderiam ter exposto as camadas mais profundas das crenças de Menocchio e suas respostas desafiadoras, são tratadas de forma breve e sem intensidade dramática. Os potenciais confrontos verbais, que poderiam ter sido repletos de tensão e significado, são substituídos por diálogos monótonos e desprovidos de emoção. Além disso, o filme falha em mostrar a atmosfera opressiva e intimidadora das sessões de interrogatório, onde o medo e a incerteza eram inconfundíveis. A falta de detalhes visuais e auditivos que poderiam ter transmitido a severidade do ambiente inquisitorial contribui para a sensação de que esses momentos são secundários na película. A ausência de uma construção cuidadosa da cena impede o espectador de sentir a gravidade da situação e a audácia de Menocchio ao manter suas posições frente à ameaça de punições severas. O detalhamento insuficiente impede que o público compreenda a verdadeira extensão dos riscos que ele enfrentou ao desafiar as autoridades religiosas de sua época.



4) Personagens Superficiais



A falta de desenvolvimento dos personagens é outro ponto fraco do filme "Menocchio". A narrativa falha em aprofundar as relações sociais de Menocchio, tanto com sua família quanto com os habitantes da aldeia de Montereale. Essa omissão impede que o público entenda a relevância de sua atuação e como ele incidiu nas interações sociais que manteve. Menocchio, como figura histórica, não existia isoladamente. Sua vida era intrinsecamente ligada às pessoas ao seu redor – sua família, seus amigos e seus vizinhos. O filme, porém, negligencia essas conexões vitais. As interações com sua família carecem de substância, não oferecendo uma visão clara sobre o impacto de suas crenças heréticas nas relações parentais. Não se explora como suas ideias e atitudes influenciavam seu papel como pai, marido ou membro da comunidade. Esses aspectos são cruciais para entender o homem além do herege, revelando as tensões e os apoios que moldaram sua vida.

As relações de Menocchio com os outros moradores de Montereale são igualmente pueris. O filme não investe tempo suficiente para mostrar como ele era visto pelos seus pares, seja como um líder de pensamento, um excêntrico ou uma ameaça. Não se vê a dinâmica social da aldeia, nem como as ideias de Menocchio ressoavam ou entravam em conflito com as crenças locais. Essa falta de exploração diminui a complexidade do cenário social em que Menocchio operava, tornando-o um personagem mais isolado do que provavelmente era.

Além disso, a ausência de interações significativas limita a compreensão do espectador sobre a influência de Menocchio. Sem ver como ele dialogava com outros membros da comunidade, como defendia suas crenças e como essas eram recebidas, o público não tem como medir o impacto real de suas ideias. As conversas que poderiam mostrar seu papel como um pensador desafiador são poucas e sem o devido destaque. Isso resulta em uma falha em transmitir a importância de Menocchio não apenas como um indivíduo com crenças heréticas, mas como um catalisador potencial de mudanças em sua comunidade.

O raso desenvolvimento dos personagens também impede que o público se envolva emocionalmente com a história. Quando as relações pessoais de Menocchio são tratadas de forma superficial, o espectador perde a oportunidade de ver o lado humano do protagonista – suas afeições, suas lutas e suas perdas. O envolvimento emocional é essencial para que o público se importe com o destino de Menocchio, e a ausência de laços significativos com outros personagens faz com que ele pareça menos real e mais como uma figura distante e abstrata.

5) Desenvolvimento Problemático


"Menocchio" é marcado por um ritmo lento e desinteressante, resultando em uma narrativa pouco dinâmica que se arrasta em muitos momentos, tornando-o enfadonho. Desde o início, o filme opta por uma abordagem contemplativa e minimalista, que, embora possa ser eficaz em certas circunstâncias, aqui resulta em uma falta de energia e envolvimento. As cenas são prolongadas sem necessidade, com longas pausas e silêncios que não acrescentam profundidade à história ou aos personagens. 

A ausência de uma estrutura narrativa envolvente compromete a experiência do espectador, que pode perder o interesse antes do final. O filme não consegue estabelecer um ritmo consistente ou um senso de progressão, o que é imprescindível para manter a atenção do público. A narrativa parece estagnada, com poucos momentos de verdadeiro conflito ou desenvolvimento significativo. Sem uma trajetória clara ou eventos que impulsionem a história adiante, o espectador pode sentir-se desorientado e desapontado com a falta de direcionalidade.

Aliás, a falta de variação no ritmo torna o filme monótono. As cenas são uniformemente lentas, sem picos de tensão ou momentos de alívio que poderiam quebrar a monotonia e revitalizar o interesse do público. A repetição de cenas semelhantes, onde pouco acontece em termos de ação ou diálogo significativo, contribui para a sensação de que o filme é estendido além do necessário. Essa abordagem não só torna difícil a imersão na história, mas também diminui o impacto emocional e dramático que a narrativa poderia ter.

Por outro lado, os diálogos são muitas vezes esparsos e pouco reveladores, não proporcionando qualquer identificação com os personagens ou a trama. As interações entre os personagens são mínimas e desprovidas de emoção, o que impede o estabelecimento de vínculos significativos que poderiam envolver o público. Sem essas conexões emocionais, o espectador pode achar difícil se importar com o destino dos personagens ou se sentir investido na história.

Outro ponto que contribui para a narrativa pouco dinâmica é a direção visual. Embora a cinematografia possa ser esteticamente agradável, com paisagens e composições cuidadosas, ela não compensa a falta de movimento e vitalidade na narrativa. A escolha de planos longos e estáticos, combinada com a escassez de ações significativas, resulta em uma experiência visual que pode parecer estagnada. A beleza visual do filme, sem o suporte de uma narrativa envolvente, acaba por parecer superficial e insuficiente para manter o interesse do espectador.



6) Problemas Técnicos



Do ponto de vista técnico, "Menocchio" também deixa a desejar, comprometendo ainda mais a experiência cinematográfica. As atuações dos personagens são, em grande parte, desprovidas de profundidade e expressividade. Os atores, embora competentes, não conseguem transmitir a intensidade emocional e a complexidade psicológica exigidas por seus papéis. As performances parecem muitas vezes apáticas e monótonas, sem os picos de emoção que poderiam tornar os personagens mais humanos ou envolventes. Essa falta de destaque nas atuações impede que o público se conecte com os personagens e se importe com seus destinos.

A sonoplastia do filme é quase nula, contribuindo significativamente para a sensação de tédio. O uso mínimo de trilha sonora e efeitos sonoros faz com que muitos momentos do filme pareçam desprovidos de vida. Em cenas que poderiam ser potencialmente tensas ou emotivas, a ausência de uma trilha sonora apropriada deixa o espectador sem a necessária orientação emocional. A sonoplastia tem o poder de elevar a narrativa, criar suspense e intensificar as emoções, mas sua falta em "Menocchio" resulta em uma experiência auditiva plana e desinteressante.

As escolhas de continuísmo também são inadequadas, falhando em dar coerência ao filme. Problemas de continuidade, como discrepâncias visuais entre cenas consecutivas e transições abruptas, tornam a narrativa desconexa e mal estruturada. Esses lapsos de continuidade tendem a distrair o espectador, quebrando a imersão na história e criando uma sensação de desorganização. Além disso, a edição parece não se preocupar em manter um fluxo narrativo suave, resultando em uma obra que frequentemente parece fragmentada e incoerente.

A cinematografia, embora visualmente interessante em alguns momentos, não é suficiente para compensar as falhas técnicas. Planos longos e estáticos, utilizados de maneira excessiva, contribuem para a sensação de lentidão e falta de dinamismo. A falta de variação nos ângulos de câmera e nos enquadramentos faz com que a estética visual se torne repetitiva e cansativa. Sem uma direção visual mais inovadora e diversificada, o filme não consegue manter a atenção do público de maneira eficaz.

Além disso, a direção de arte, que poderia ter sido um ponto forte ao recriar a atmosfera do século XVI, é subutilizada. Os cenários e figurinos, embora autênticos, não são explorados ao máximo para enriquecer a narrativa. A ambientação histórica parece muitas vezes superficial, não conseguindo transportar o espectador para a época de Menocchio de maneira imersiva. A falta de detalhes visuais que poderiam adicionar camadas à história e aos personagens é uma oportunidade perdida para tornar o filme mais atraente.

Considerações Finais


Em conclusão, "Menocchio" desperdiça uma excelente oportunidade de imortalizar nas telonas um grande clássico da historiografia e de difundir a história de Menocchio para novos públicos. O filme não só decepciona aqueles familiarizados com "O Queijo e os Vermes", mas também não consegue cativar espectadores que desconhecem a fascinante história de Domenico Scandela.

O trailer do filme você confere a seguir:

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.



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