A Primeira Guerra Mundial nas páginas de uma publicação infantil brasileira #2

 

A Primeira Guerra Mundial nas páginas de uma publicação infantil brasileira #2

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914–1918), o mundo foi profundamente transformado em múltiplas esferas. Essa época de conflito não apenas moldou o futuro da geopolítica global, mas também teve um impacto significativo na cultura popular, incluindo o universo infantil. Em meio a esse contexto, surge no Brasil um curioso brinquedo chamado “A Guerra em Família”, anunciado na famosa revista infantil O Tico-Tico. Esse jogo, inspirado no clima de guerra, oferece uma fascinante janela para entender como o conflito foi absorvido e reinterpretado pela sociedade brasileira, especialmente no que diz respeito ao entretenimento infantil.

A Grande Guerra, como se sabe, foi um conflito de proporções sem precedentes, envolvendo as maiores potências mundiais da época. O confronto marcou uma época de profundas mudanças políticas, sociais e culturais. No Brasil, o conflito impactou a economia e a sociedade, influenciando desde a produção industrial até as práticas culturais. Mesmo que o país só tenha se envolvido diretamente nos últimos anos da guerra, os ecos do conflito estavam presentes em jornais, revistas e, claro, no imaginário popular.

Em meio a esse cenário, O Tico-Tico, a primeira publicação infantil do Brasil, desempenhava um papel central na formação das crianças no início do século XX. Criada em 1905, o periódico era conhecido por suas histórias em quadrinhos, passatempos e jogos que refletiam, de maneira leve e lúdica, os temas do momento. Enquanto a Primeira Guerra Mundial perdurou, a publicação divulgou amplamente o conflito em suas páginas, aproximando-o do público infanto-juvenil. Foi nesse contexto que surgiu o jogo “A Guerra em Família”, oferecendo às crianças brasileiras uma forma de se conectar com o grande evento que dominava as manchetes mundiais.

A guerra nas páginas de “O Tico-Tico”

“A Guerra em Família” era um brinquedo com uma premissa simples, mas que capturava a essência das batalhas. Só haviam dois componentes: um tabuleiro encaixotado e uma pequena bola. As regras estabeleciam que se a bola, representando o avanço das tropas no tabuleiro, caísse em um dos orifícios ao longo do percurso, o jogador perderia um número específico de soldados. Cada jogador começava a partida com um contingente de 550 homens, e o objetivo era chegar a Berlim, capital do Império Alemão, com o maior número possível de soldados, evitando os perigos pelo caminho. Indicando a Alemanha como o inimigo principal, o jogo demonstrava sua simpatia aos países da Tríplice Entente. Tratava-se, portanto, de uma clara dinâmica centrada na metáfora da guerra.

A aleatoriedade dos eventos, representados por orifícios dispostos caoticamente no tabuleiro, garantia que o elemento de sorte também desempenhasse um papel importante, refletindo a imprevisibilidade da guerra real. Mesmo assim, as regras sugeriam que, com o tempo, os jogadores desenvolveriam estratégias para evitar essas “zonas perigosas”, adicionando uma camada de complexidade e habilidade ao jogo. Apenas com prática e observação, seria possível minimizar as perdas e aumentar as chances de vitória.

As regras do jogo publicadas em “O Tico-Tico”

Com óbvias referências ao conflito mundial, “A Guerra em Família” se alinhou à tendência global de transformar a guerra em tema de brinquedos, revestindo as brincadeiras com contornos militaristas. O jogo, inclusive, não era de todo original: ele foi fortemente inspirado em Trench Goal Football, brinquedo britânico com a mesma premissa de conduzir a bola entre as trincheiras até Berlim. A única diferença, além dos elementos gráficos, é o formato do tabuleiro, com ligeiras mudanças no posicionamento das trincheiras pelo caminho. O jogo, porém, não mencionava a inspiração e se apresentava como original. Seja como for, “A Guerra em Família” serviu tanto como entretenimento quanto como ferramenta de propaganda da guerra para as crianças.

O fato do brinquedo ter sido anunciado em O Tico-Tico, a principal publicação infantil do país, também não foi por acaso. Sem dúvidas, isso revela como a guerra era um tema que permeava a sociedade brasileira da época, estendendo-se até mesmo ao entretenimento infantil. Ao jogar “A Guerra em Família”, as crianças não apenas se divertiam, mas internalizavam, além de valores militaristas, noções de estratégia, risco e sorte — conceitos que, embora simplificados, eram reflexos das realidades vividas pelos adultos.

“A Guerra em Família”, enfim, é mais do que apenas um brinquedo: o jogo é um testemunho de como a Primeira Guerra Mundial impactou decisivamente a vida cotidiana. Ao analisarmos este jogo, vemos não apenas uma tentativa de capturar a essência da guerra em um contexto lúdico, mas também um reflexo das complexidades e contradições do período, quando crianças eram induzidas a se identificar com um dos mais violentos e brutais conflitos da História. Dessa forma, o jogo serve como um artefato cultural que nos ajuda a entender como a guerra foi internalizada e representada em diferentes contextos, mesmo em um país que estava tão distante dos campos de batalha europeus.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

Comentários