Racismo e Submissão em um Quadrinho da Primeira República
Racismo e Submissão em um Quadrinho da Primeira República
Ao folhearmos as primeiras edições da revista infantil O Tico-Tico, criada no início do século XX, é difícil não notar as histórias de Juquinha, personagem que alcançou grande popularidade nos primórdios da jovem República brasileira. Idealizado pelo desenhista José Carlos de Brito Cunha (1884–1950), mais conhecido como J.Carlos, Juquinha foi um importante ícone dos quadrinhos nacionais. O personagem não era de todo original, sendo evidente a influência das histórias em quadrinhos de Richard Outcault (1863–1928), criador de Yellow Kid e Buster Brown, personagens infantis de enorme sucesso nos EUA e que tinham o cômico como marca principal. Seguindo uma linha semelhante, O Talento de Juquinha narrava as travessuras do personagem-título, sempre rápido em pregar uma peça em quem o rodeava. No entanto, além do humor característico da época, os quadrinhos de Juquinha chamam a atenção por outro motivo. Várias histórias apresentavam um conteúdo preconceituoso e estereotipado em relação aos negros, refletindo concepções herdadas da mentalidade escravista, ainda presente no início do período republicano.
Antes de analisá-las, vale a pena falar um pouco sobre a revista infantil onde essas histórias apareciam. A revista O Tico-Tico foi uma das grandes pioneiras na publicação de quadrinhos no Brasil. Inspirado na revista francesa La Semaine de Suzette, o periódico direcionado ao público infantil foi lançado no dia 11 de outubro de 1905 e rapidamente caiu nas graças dos leitores da época. Criada durante a Primeira República brasileira (1889–1930), os quadrinhos de O Tico-Tico se relacionavam em grande medida ao contexto político, social e cultural que o país, e principalmente a capital federal, então vivia.
Em O Tico-Tico, a primeira aparição de Juquinha foi em 28 de fevereiro de 1906 e se estendeu até 25 de fevereiro de 1907, quando o personagem deixou de figurar na revista. Enquanto O Talento de Juquinha foi publicado, as histórias eram centradas no personagem principal, uma típica criança de família burguesa do início do século XX. Abastado, Juquinha é apresentado como um garoto travesso e com ar senhorial, sempre se divertindo à custa dos outros. Um coadjuvante frequentemente presente em suas histórias é o empregado negro conhecido como Giby. Giby é a antítese de Juquinha: ingênuo, obediente e pobre. Sujeito às vontades do filho dos patrões, Giby é vítima das travessuras e do sarcasmo de Juquinha. Como se vê, o quadrinho não se resume ao humor infantil. Ao longo das páginas, é possível notar um teor racista e uma lógica senhorial típicas de um país que havia acabado de abolir a escravidão.
Vários elementos das histórias de Juquinha remetem a maneira segundo a qual os negros eram representados na imprensa da Primeira República. A começar pelo título. Em uma história dividida em três partes, na qual o personagem Giby aparece pela primeira vez, destaca-se um atributo frequentemente associado ao serviçal negro do garoto Juquinha: “A Ignorância de Giby”. O jovem negro, contratado como o novo copeiro da casa de Juquinha, é apresentado como matuto e ingênuo, o oposto do esperto garoto branco. Não por acaso, as feições de Giby são representadas de maneira exageradamente caricata e a sua expressão dá a impressão de tolice, completando o estereótipo do negro. A cor da pele do novo empregado, aliás, é alvo de comentários sarcásticos na primeira parte da história. Juquinha, se surpreendeu com a cor de Giby, pois ele era o “moleque mais preto que até hoje tem se visto”. Isso fez com que Juquinha desse risadas do copeiro em um tom notadamente jocoso. Referindo-se a ele como Giby, que significa moleque negro, Juquinha faz uma piada com o nome do empregado, Izidóro Carneiro, ironizando o fato dele se chamar Carneiro e ter a pele preta. Um exemplo que aponta para a conotação racista do quadrinho, em grande parte influenciada pelo pensamento raciológico oitocentista.
Na segunda e na terceira partes da história, se percebe uma clara lógica servil na relação entre Juquinha e Giby. Usando o empregado para se divertir, Juquinha prepara uma travessura se valendo de sua posição como filho dos patrões. O garoto ordena que Giby faça uma pescaria em uma tigela de água, sendo prontamente atendido. Divertindo-se com a ignorância do copeiro, que obedece cegamente, Juquinha avisa a sua mãe do comportamento de Giby e dá risadas quando o empregado é repreendido por ela. Uma piada desagradável baseada na subserviência presente no relacionamento entre brancos e negros, algo que subsistia no início do século XX.
A persistência de elementos que evocavam a escravidão, abolida cerca de vinte anos antes da publicação dos quadrinhos, se faz ainda mais evidente em outra história. Nesta, o garoto Juquinha colocou em prática novamente uma de suas brincadeiras. Ele confecciona uma imitação de rosário com muitas contas e uma linha, ordenando que Giby entregasse à avó. A intenção do menino era zombar da avó, fazendo com que ela rezasse um rosário interminável. Giby obedece servilmente o garoto. Quando a avó de Juquinha se dá conta da travessura, ela repreende Giby, culpando-o pela brincadeira. O empregado mantém-se “fiel a seu patrãozinho”, sujeitando-se “à gritaria sem a menor desculpa”. Em uma relação de submissão que guarda semelhanças com a escravidão, Juquinha faz de Giby o seu capacho, usando o pobre copeiro como distração e joguete para os folguedos que fazia. Um relacionamento, enfim, que ia muito além do que um empregado e seu patrão deveriam ter.
O tom racista de Juquinha e a submissão que o garoto impõe aos seus empregados negros aparecem em várias histórias. Em uma delas, Giby, o principal alvo de suas travessuras, coloca um vaso na cabeça por ordens de Juquinha. O vaso contém uma careta jocosa desenhada por Juquinha. O garoto faz com que Giby fique parado na rua com o tal vaso, para o espanto dos transeuntes que passavam. Juquinha se diverte zombando do empregado, lançando mão da relação hierárquica que existia entre eles. Em outra travessura do menino, Juquinha decide fazer um cinematógrafo improvisado, usando Giby como distração para suas vontades. O tom preconceituoso em relação ao copeiro negro é indefectível, uma vez que Giby é comparado a um macaco. Mas Giby não era o único negro a ser alvo do sarcasmo de Juquinha. Os filhos da cozinheira da casa, igualmente negra, também serviram como diversão para o filho dos patrões. As crianças Sebastiana e Benedicto foram vestidas por Juquinha com as roupas de seus pais em uma tentativa de pregar uma peça na mãe do “patrãozinho”. A intenção do garoto era fazer com que os filhos da cozinheira parecessem um casal adulto de boa família, o que é encarado com sarcasmo por Juquinha. Divertindo-se com a obediência alheia e com o domínio que exercia sobre os empregados da casa, Juquinha revela em seu comportamento o preconceito racial e o ar de superioridade que caracterizavam o personagem.
As histórias de Juquinha apontam para a persistência da mentalidade escravista e senhorial mesmo após a abolição da escravidão
Os quadrinhos publicados na revista O Tico-Tico são um bom exemplo da manutenção de valores advindos da escravidão na sociedade brasileira mesmo após o seu fim. A jovem República do início do século XX, apesar de apresentar-se como moderna e em sintonia com a belle époque europeia, ainda carregava marcas de seu passado. Noções de cunho racista e a lógica senhorial eram recorrentes entre os grupos dominantes, sendo costumeiramente difundidas na imprensa da época, até em uma publicação infantil. A relação de Juquinha e Giby, afinal, reflete a desigualdade entre brancos e negros em um país recém-saído da escravidão.
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.
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